terça-feira, 6 de dezembro de 2011

História 2 - Bruno e a Cidade das Trevas

- Pai. Quando eu crescer quero desenhar tão bem quanto o senhor.

- E irá filho. Talvez melhor. Se você desenhar com o coração você será o maior de todos os artistas. – Respondeu o homem voltando os olhos para a sua tela.

História 2 – Bruno e a Cidade das Trevas

A França vive momentos difíceis. Em meio a uma guerra cibernética o país decreta estado de censura. As autoridades boicotam os meios de comunicação para impedir que a verdade atravesse as fronteiras do país. Os que não conseguiram deixar a França hoje tentam sobreviver mesmo com a dura realidade do lugar.


Fazia muito frio em Paris o que apenas aumentava sua aparência cinzenta e melancólica. A triste realidade do que um dia fora a “cidade luz”.

Bruno levantou muito cedo naquele dia e como costumava fazer toda manhã foi em direção à janela de seu apartamento. O vidro estava completamente coberto pela neve que caia impedindo que se enxergasse uma alma viva lá fora.

- A censura nos cega – Pensou Bruno ironicamente.

Arrumou-se com pressa, pois queria aproveitar a cidade deserta. Poderia desenhar o que bem entendesse sem se preocupar com a polícia que costumava fazer suas rondas à procura dos artistas que não respeitavam as regras estipuladas para exercer a profissão. Eles confiscavam as suas obras e prendiam os “delatores”, assim apelidados por eles, que nunca mais eram vistos.

Bruno saiu com cuidado para não despertar os seus vizinhos. Em tempos como este não se podia confiar em ninguém.

O vento gélido bateu em seu rosto dando-lhe bom dia e o fazendo contrair-se um pouco. Não era comum uma nevasca assim em plena primavera.

Ele andava a passos largos e sempre tomando cuidado para não ser seguido. O que faria hoje era extremamente arriscado. Ele iria até a parte central da cidade. Local onde estava localizada a sede do PPP, partido que com um golpe militar tomou o controle do país.

Bruno andava depressa e antes mesmo de amanhecer já conseguia ver a enorme cerca de arame surgir no horizonte. Apenas membros do partido e policias possuíam acesso para entrar ou sair do lugar.

Por um tempo Bruno apenas observou a cerca imaginando o que poderia haver do outro lado que a fizesse necessária.

Seguiu com cuidado até estar a poucos metros dela.
Foi rapidamente em direção a uma fenda que descobrira dias antes. Ela era grande, mas não o suficiente para um homem adulto. O pequeno erro de calculo obrigou Bruno a cavar com as mãos o gelo para aumentar a passagem. Ainda assim ele encontrou certa dificuldade para entrar, o que demandou um tempo maior do que o esperado.

Agora, do lado de dentro, todo cuidado era pouco.
Correndo, Bruno tentava captar o máximo de informações possíveis com seus olhos. Era uma oportunidade que com certeza não teria de novo. Saindo com vida ou não dali.

Eram poucas as diferenças entre os dois lados da cerca, apesar de ser evidente que a qualidade de vida do lado de cá era muito melhor.

O cinza entrava em contraste com os muitos cartazes vermelhos colados nos vidros e muros com os dizeres “Paris pour le progrès” ou “Paris pelo progresso” e a foto de um homem que Bruno não reconheceu, mas já o odiava. Aliás, ele odiava tudo daquele lado da cerca.

Era difícil escolher algo para retratar em sua tela. Tinha que ser algo que valesse a pena todo o esforço, mesmo ele sabendo que o seu tempo não lhe dava liberdade para muita seleção.
Durante um tempo Bruno não teve problemas para circular por ali. Viu apenas um policial que parecia estar voltando de sua ronda noturna, portanto cansado o suficiente para não perceber a movimentação do rapaz.

Estava agora em uma rua de prédios altíssimos, daqueles que mal se consegue ver o topo, exceto por um. Um prédio tão acabado que desafiava as leis da física por ainda estar de pé. Mesmo assim possuía certa majestade. Talvez por ser o único que fugia do padrão dos prédios vizinhos.

Bruno passou pelo saguão de entrada do prédio e ficou admirando o átrio de pedra e imaginando que aquele lugar já fora importante um dia.

As poucas janelas forneciam uma fraca iluminação o que só aumentava o clima fantasmagórico do lugar.

Ao subir o primeiro lance de escadas Bruno percebeu algo:
- Alguém andou procurando algo aqui!

O chão estava completamente coberto por papéis. Eram documentos escritos com um francês bastante formal e cheios de termos técnicos que impossibilitavam a compreensão de Bruno.
A pilha de papéis levava a uma porta que, diferente de todas as outras, estava fechada cuidadosamente. De todo o corredor era a única porta vermelha e parecia estar em bom estado se comparada às demais.

A curiosidade guiou sua mão até a maçaneta. Ele não sabia o que era, mas algo atrás daquela porta o atraía.

O interior da sala era bastante intrigante. No lugar estava apenas uma mesa enorme com sete cadeiras distribuídas ao seu redor, milimétricamente. Uma oitava cadeira estava prostrada no extremo oposto da mesa, virada em direção à parede. O último ocupante daquele acento admirava a mesma coisa que agora brilhava nos olhos de Bruno. Um monitor enorme, até então desligado, enchia a sala com o brilho de sua tela. A imagem era muito ruim, forçando Bruno a se aproximar um pouco mais. Ficou ali encarando a tela que chiava muito quando ouviu um barulho que o fez despertar.

- Saia daí seu delator! Desça e se entregue pacificamente ou iremos subir.

O grito veio do lado de fora do prédio.

- Mas que mer... – Era a policia. Não demoraria muito tempo para que o prédio estivesse infestado de homens do PPP.

Ele virou rapidamente em direção à porta e ficou ali, imóvel, enquanto em sua mente procurava uma saída que o tirasse daquela situação. O único caminho que conhecia para sair era o mesmo por onde entrara, mas sabia que esse já não era uma opção. Aquela altura o prédio estava totalmente cercado.

Antes de deixar a sala Bruno olhou para o monitor mais uma vez que agora exibia uma imagem bem nítida. O algarismo 7 se mostrava em tons de vermelho e amarelo acompanhado dos dizeres:
“A luz guiará seus passos”.
O que era aquilo? O que significava aquele número? E o que queria dizer aquela frase?
A mente do rapaz estava tão bagunçada quanto o próprio prédio, coberta de dúvidas que chegavam a lhe dar dor de cabeça.

Bruno piscou os olhos, mesmo sabendo que ao fazê-lo, tudo aquilo sumiria e ele voltaria à realidade que agora subia as escadas, munida até os dentes para pegá-lo.
O monitor desligou sozinho tão inesperadamente como quando ligou, avisando Bruno que era hora de partir.

Saiu da sala rapidamente e correu pelo corredor tentando abrir as demais portas, mas diferente da de cor vermelha, nenhuma delas se abriu.

Já dava para ouvir a conversa dos homens no saguão de entrada. O tempo estava acabando junto com as opções quando Bruno chegou ao fim do corredor. Não havia nada ali além de um pequeno buraco na parede.
Era o seu fim.
Bruno pensou em seu pai, o homem de quem herdara o talento para as artes e quem lhe ensinou tudo sobre a vida dentro e fora das telas. Homem que anos antes fora capturado pelos agentes da PPP por desenhar o que realmente acontecia nas ruas de Paris e que nunca mais fora visto. Se fechasse os olhos ainda podia ouvi-lo repetindo as frases de famosos artistas com tanto orgulho como se ele mesmo as tivesse criado:
“A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade” – Pablo Picasso.
“A arte diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.” – Leonardo da Vinci.
Naquele momento o jovem artista não conseguia entender como se irritava com seu pai quando ele fazia isso.

Passos nas escadas indicavam que os policias estavam cada vez mais próximos.
Bruno olhou ao seu redor mais uma vez procurando algum detalhe que tivesse deixado, mas sabia que era em vão.

Ficou olhando para aquela parede sem nada além do buraco por onde passava a única claridade dali. Era um pequeno feixe de luz que ia até o chão.

Bruno caminhou até lá sem saber o porquê e se ajoelhou próximo à luz que iluminava uma das tábuas do velho piso de madeira, quando viu a silhueta de um homem no fim do corredor.
- Parado! Policia de Paris!

Sem olhar para o policial ele colocou levemente a mão sobre a tábua iluminada que afundou alguns centímetros. Bruno ficou sem entender o que aconteceu quando ouviu um estalo forte e em seguida um barulho estranho que vinha debaixo do chão. Tudo aconteceu muito rápido. O chão se abriu e ele caiu com um baque forte.

Levantou-se lentamente tentando se recuperar do choque. O lugar era estranhamento bem conservado. Seja lá quando fora a última vez que alguém estivera ali, o lugar parecia intacto.
Olhando para cima, o artista tentou encontrar o buraco por onde caiu, mas a porta do alçapão já estava fechada. Conseguia apenas ouvir os policias no andar de cima:
- Onde ele se meteu?
- Não sei! Eu juro que ele estava aqui. De repente sumiu! – respondeu o policial com medo.
- Você é um incompetente Gerard! Vamos ter um conversa quando chegarmos à central. Vamos embora homens. Ele não pode estar longe.

Pela quantidade de passos que ele ouviu em seguida, haviam muitos homem lá em cima.
Não tinha o que fazer a não ser seguir em frente pelo túnel. Andou tempo o suficiente para precisar fazer algumas pausas para descansar. Não fazia ideia de quanto tempo estava ali, mas a sensação era claustrofóbica.

Bruno nunca estivera em situação semelhante, mas esperava encontrar uma luz que lhe indicasse a saída. Isso não aconteceu. Pelo contrário, ele chegou ao fim do caminho e se deparou com uma parede de pedra.

Fez a única coisa que lhe veio à cabeça. Colocou suas mãos sobre a pedra e, com o corpo, fez força para empurrar a pedra que tombou para a frente exibindo o céu cinza Paris.
Saiu curioso de dentro do túnel pensando no que encontraria do lado de fora. Ficou surpreso ao perceber que estava consideravelmente perto de casa. Estava fora da região central e longe do prédio que descobrira há pouco.

O primeiro som que ouviu ao sair foi o das sirenes dos carros de policia. Eles estavam o procurando pela cidade toda.
Correu até chegar em casa sem se importar com os olhares curiosos. Correr assim naqueles tempos não era bom sinal.

Subiu as escadarias do seu prédio até chegar ao número 32, seu apartamento. Entrou, trancou a porta e sem parar para respirar foi até a sua escrivaninha apoiando uma folha de papel e desenhou o número que viu horas antes. O número 7.

Ficou admirando o desenho feito com a mão trêmula, os traços toscos e fortes que marcaram o papel de tal forma que a chegou a rasgá-lo, as cores que mal preenchiam a figura por causa da pressa. Era a obra prima de Bruno.

Adormeceu ali mesmo com a cabeça apoiada em seu desenho e só despertou no outro dia, pouco depois do por do sol.

A adrenalina ainda estava alta, por isso decidiu que não iria ficar em casa. Iria sair para trabalhar normalmente. Nunca se sentira tão vivo.

Chegou a Praça da Concórdia, lugar onde passava seus dias desenhando e vendendo quadros.

Não eram bons tempos para negócios. Bruno sentia falta da época em que ficava ali desenhando jovens casais apaixonados que iam jogar moedas na fonte para trazer boa sorte, senhores que se reuniam para jogar xadrez ou discutir política abertamente, o que nos dias de hoje seria crime, enfim, sentia falta da velha Paris. 

Hoje a praça não recebia mais nenhum visitante. Ninguém além dos muitos mercadores da região frequentava o lugar. Bruno não sabia por que eles continuavam a ir à praça mesmo sem clientes. Talvez fosse uma forma de não aceitar aquela realidade. Talvez fosse a esperança de que no dia seguinte a praça estaria lotada novamente, barulhenta com os gritos dos vendedores e as risadas das crianças que corriam atrás das pombas.

Como todos os dias, Bruno montou sua tenda sabendo que não teria visitantes. Por isso todos os dias repetia a mesma rotina. Desenhava em suas telas paisagens aleatórias, animais, objetos inanimados, qualquer coisa que mante-se sua mente e mãos ocupadas.
O dia anterior ainda o perturbava. Não conseguia ao menos visualizar uma imagem para transportar para a tela.

Abriu a entrada da tenda para poder enxergar melhor a praça. Era isso que iria desenhar.
Os gritos dos vendedores fizeram Bruno sair da tenda. Uma pessoa se aproximava da praça. Era um cliente.

Todos começaram a arrumar seus produtos, expondo as melhores peças, tentando chamar atenção do inesperado visitante a todo custo.
- Aqui amigo. Porque não experimenta essa bota. Ela é muito rara, vem direto da África do Sul.
- Ei. Precisa de um relógio companheiro?

Todos pareciam ouriçados, exceto Bruno, que voltou a sua tenda para terminar seu desenho. Não tirou os olhos da tela até que uma sombra bloqueou o a iluminação que vinha de fora.
- Que belíssimas obras! Parecem até que vão sair do papel! Há quanto tempo você desenha? - Perguntou o homem de sobretudo.
- Desde que me conheço por gente - Respondeu Bruno um tanto desconfiado. Aquele homem não aparentava possuir interesse por arte. O jovem não conseguia tirar o olho da cicatriz no rosto do homem. Ela cortava sua face da bochecha até a parte superior da sobrancelha. Onde teria conseguido uma cicatriz assim?
- Essas são todas as suas artes? O que mais você desenha?
- Apenas o que você vê – respondeu o artista de forma ríspida. A curiosidade do homem o irritava.
- Esperava que a visita que fez ao centro da cidade tivesse lhe trazido alguma inspiração. Estou realmente decepcionado Bruno. – quando terminou a frase outros dez homens surgiram por trás do policial. Eles sabiam.

O artista não manifestou nenhuma reação. Continuou desenhando sua tela sem se importar com a situação.
- Não brinque comigo seu “delator”. Olha para mim enquanto falo com você – O tom do homem era agressivo.
- Peço para que o senhor não grite. Isso atrapalha minha concentração. – Bruno olhou para o homem por cima dos óculos, desafiando-o.
- Desculpe. Não era minha intenção atrapalhá-lo. Mas não posso falar por eles.
Com um gesto de mão o homem deu ordem para seus capangas que não hesitaram e entraram na tenda com ferocidade.

Bruno voltou a pincelar sua tela esperando os seus opositores o alcançarem. Quando o choque já era iminente o rapaz fechou os olhos com força.
Os homens que antes avançavam rápido em direção ao artista pararam de repente. Em choque, o primeiro da fila exclamou:
- Ele sumiu!
- Não é possível. Saia da frente! – disse o líder empurrando o outro.
Bruno não estava mais sentado em sua cadeira. Ao menos estava dentro da tenda. Simplesmente sumira.

- Onde ele pode ter ido? Rápido homens. Ele deve estar por perto. Vasculhem toda a área.
Enquanto os homens saiam apressados o líder do bando se agachou para pegar o quadro que Bruno pintava antes de desaparecer.

A cena na tela retratava exatamente o momento em que os policiais cercavam a tenda. Na frente dos homens o líder, de sobretudo gritava a ordem de ataque. Tudo exatamente da mesma maneira como aconteceu há poucos segundos, com apenas uma exceção: O pintor não estava na cena. 

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