Houari entra na tenda do cacique bastante desconfiado. O que o cacique ia querer com alguém como ele? Um convite como esse é uma grande honra. Honra essa reservada apenas para os mais fortes membros da tribo e ele com certeza não se enquadrava nesse perfil. Nem tinha em seu currículo grandes façanhas heróicas. Na verdade, mal possuía talento para o combate. Talvez seja esse o motivo da conversa com o cacique.
- Entre e sente-se! – Disse o cacique sem nem ao menos virar – se para encarar o convidado.
HISTÓRIA 1 - HOUARI E A TRIBO MAHUÁ
São muitas as lendas contadas a respeito da tribo Mahuá, apesar de não haver nenhum registro que comprove a sua existência. Alguns acreditam que a tribo existe há mais de 5000 anos. Outros acreditam que essa tribo possui poderes místicos e que com eles defendem as florestas e os animais em perigo.
O cacique era um homem velho, mas ainda assim ostentava músculos e marcas de batalha que amedrontariam até mesmo o mais corajoso guerreiro.
- Houari, eu sei que você acha que não pertence a essa tribo. Desde que contei a você que nós o encontramos na grande floresta e o acolhemos você se sente deslocado. Mas saiba que você é um Mahuá. O acidente de helicóptero, do qual você sobreviveu e que levou seus pais, é só um sinal da força que vive dentro de você. Por isso lhe chamei aqui. – O cacique agora fitava o rapaz confuso sentado em sua frente.
- Eu não entendo.
- Não tenho mais muito tempo de vida e preciso que alguém ocupe meu lugar e lidere nosso povo em breve. Acredito que você seja a pessoa mais indicada.
O rapaz piscou algumas vezes como se aquele gesto fosse trazer algum sentido ao que havia acabado de escutar. Não trouxe! Mas antes que ele abrisse a boca para falar o cacique continuou:
- A força de um homem não está em seus músculos se é isso que está pensando – era isso que ele estava pensando - Você mostrará seu valor para a tribo Mahuá. Em breve a força Mahuá que existe dentro de você se manifestará. Infelizmente não estarei aqui para ver isso mas já posso senti-la.
- Como pode ter tanta certeza? - Ele levou um tempo para organizar seus pensamentos – O senhor parece extremamente saudável pra mim.
O cacique pareceu um pouco incomodado com a curiosidade do rapaz e encerrou o assunto.
- Chega de conversa. Tenho muitas coisas para organizar ainda. Vá e reflita sobre o que falei
– E com as mãos fez um gesto para que o garoto fosse embora.
Durante todo o dia Houari evitou comentar sobre a conversa que teve com o Cacique, apesar da insistência de seus amigos. De que adiantaria contar? Ninguém iria acreditar.
Cansado e confuso, o jovem se deitou cedo e assim fez também o Cacique, os dois únicos que não estavam presentes na celebração da noite em que, todos os dias, os membros da tribo cantam e dançam em agradecimento ao dia que tiveram.
Houari não dormiu um só minuto durante a noite, seus pensamentos não o deixaram descansar. Ele ficava repassando a conversa que tivera com o cacique e tentando encontrar alguma brecha, algo que deixou escapar e que pudesse esclarecer suas dúvidas.
Os primeiros feixes de luz bateram em seu rosto e o despertou de seu “transe”. Mal vira o tempo passar em meio aos seus anseios.
O jovem nem ao menos tomou seu café da manhã. Precisava falar com o Cacique, mesmo sem ter sido convidado. Sua curiosidade seria o seu álibi para incomodar alguém como o chefe da tribo Mahuá.
A tenda estava escura e mal dava para ver o seu interior. Houari não sabia qual seria a forma mais sútil de se aproximar, se é que houvesse uma.
Ao entrar Houari precisou aguardar para que seus olhos se acostumassem com a baixa claridade do lugar. Em seguida andou vagarosamente em sentido a rede do Cacique, que, fechada, era o único lugar onde poderia estar.
- Se aproxime rapaz – Disse a voz rasgada do Cacique da tribo Mahuá.
- Ele sempre faz isso. Exibido! – pensou o jovem após o susto que tomara.
A rede se abriu e apresentou um homem abatido e pálido. Aquele deitado na rede estava muito longe de ser o poderoso Cacique da tribo Mahuá que Houari um dia vira em batalha, erguendo sua lança e dando um urro tão estrondoso quanto o de um leão amedrontando sua presa.
- Me dê sua mão - Disse o homem que logo foi atendido. Ele ficou segurando a mão do rapaz e fechou os olhos. Houari não sabe quanto tempo passou até que o Cacique abrisse os olhos, mas sabe que algo aconteceu ali. Algo importante.
- Eu preciso que você vá até a parte sul da floresta proibida e me traga uma erva que só pode ser encontrada naquela região. Ela é avermelhada e tem o nome de “Sete sangrias”. Vá o mais rápido possível, não aguentarei muito tempo.
- Sim senhor – E mais rápido do que pudesse perceber já estava na orla da floresta proibida. Ela recebia esse nome por ser muito próxima de um mundo que não conheciam. Um mundo do qual desde pequeno Houari ouviu dizer ser perigoso. Onde as pessoas guerreavam entre si e a maldade reinava. Mas mal se lembrou disso ao adentrar a floresta. Ele tinha uma missão importante e ia cumpri-la.
A floresta era de fato assustadora. Houari conhecia inúmeras lendas sobre o lugar e agora, após andar poucos metros mata adentro, já não lhe pareciam mais tão absurdas assim.
Correu desesperado durante muito tempo, como se soubesse exatamente onde estava indo. O sol estava começando a se esconder nas montanhas que cercavam toda extensão da floresta quando algo fez com que Houari interrompe-se sua busca. Era um barulho ensurdecedor. Um ronco que não parecia ser de qualquer animal com o qual Houari já tivesse se deparado.
Ele prosseguiu lentamente tentando encontrar a origem daquele estranho som. A floresta, antes escura, possuía agora um tom estranhamente avermelhado e um cheiro intenso de fumaça.
A vegetação que antes era alta e abundante aqui já não existia mais. Não havia uma só árvore, apenas cinzas. Houari caminhava devagar agora impressionado com o que via. Era um cemitério. Não havia vida naquele lugar exceto por uma pequena plantinha soterrada pelas cinzas. Com as mãos, Houari limpou a pequena sobrevivente e retirou-a do chão admirando suas sete folhas vermelhas e esquecendo por um momento do terror que o cercava. A Sete Sangrias era linda.
Era hora de voltar. De levar a erva para curar o cacique e talvez, quem sabe, tudo voltar a sua normalidade. Entretanto, a alegria por cumprir a missão não durou muito. Ela se foi assim que aquele ronco voltou a ressoar, agora ainda mais perto do índio.
Mesmo sem energia Houari correu o mais rápido que pode e entrou novamente na mata que lhe parecia agora bastante convidativa. O barulho o acompanhava como se estivesse o perseguindo.
O índio não via a hora de sair daquele lugar. Cada vez que imaginava sua tribo a energia voltava a percorrer seu corpo cansado.
Ele já havia percorrido boa parte do caminho de volta quando algo prendeu seu tornozelo e o impedia de continuar. Lutando em vão para se soltar Houari ouvia agora o barulho que o perseguia com muita clareza. Seja lá o que estivesse fazendo aquele som, estava muito próximo.
Protegendo a erva com umas das mãos, o índio se debatia para soltar seu pé da armadilha que com uma fisgada o ergueu do chão e o levantou no ar suspenso em uma rede. Estava preso como um animal indefeso.
Era difícil distinguir as figuras que apareceram por estar de ponta cabeça, mas conseguiu ver que eram dois homens. O mais alto que possuía um bigode saliente agora encarava o índio bastante desapontado. Já o outro estava distraído com um objeto estranho que carregava.
- Droga. Achei que fosse algum daqueles javalis. É um índio. Ei estou falando com você! – O homem se irritou com a falta de atenção do companheiro.
- Desculpe. Essa motosserra é incrível. Nós vamos acabar com o trabalho rapidinho.
- Preste atenção. O que faremos com ele? - O bigodudo guiou o seu amigo até o prisioneiro.
-Em nome da tribo Mahuá eu ordeno que me deixem ir – disse o índio com pressa.
- Caramba então eles existem. Eu sabia cara! Eu sabia! - O homem olhava agora para o índio com a mesma admiração com que olhava para sua máquina.
- Do que você está falando? – questionou o primeiro homem cada vez impaciente.
- Nunca ouviu falar sobre a tribo Mahuá? – Disse esperando que a resposta fosse negativa.
- Deveria?
- Claro! A história de tribo Mahuá é muito famosa. Dizem que eles têm poderes especiais, que conseguem falar com os animais e que...
- Ora faça-me o favor! Viemos aqui para ouvir “historinhas” ou vamos terminar o trabalho? Anda, pega logo sua motosserra e vamos pegar mais umas árvores dessas!
-Eu não vou derrubar árvore nenhuma. Escute o que eu estou te dizendo. Ele vai nos matar!
- Há há há! Olhe para ele? Você acha que ele vai fazer algo contra nós? Vamos, corte mais uma árvore dessas e vamos ver o que ele vai fazer!
- Não brinque com isso, eu estou te avisando.
- Ora, deixa de ser covarde! Me dê isso aqui. - Com um solavanco o homem tomou a ferramenta das mãos do colega e puxou a ignição. O barulho que mais cedo assustara o índio agora era ensurdecedor.
- Eu não vou ficar aqui pra ver isso. Não diga que não te avisei – Disse o assustado homem antes de fugir pelo mesmo caminho de onde veio.
- Vai embora mesmo seu louco! Eu fico com todo o pagamento! – Gritou o homem que restou.
Com a barulhenta motosserra ligada o homem se preparou para executar o trabalho quando o farfalhar de arbustos o assustou.
- Essas histórias idiotas. Vamos, faça alguma coisa pra me impedir índio – Disse o homem antes de começar a cortar a arvore.
Assim que a serra penetrou a casca da árvore, uma dor lancinante percorreu o corpo do índio. Uma pontada no peito, quase como se alguém estivesse apertando seu coração com as mãos, o fez gritar de dor.
- Ora, não gosta de ver isso? – falou o homem antes de voltar a serrar a árvore.
Novamente a dor percorreu o corpo do índio, dessa vez ainda mais forte.
- Pare com isso agora. Pare!
O homem deu de ombros e continuo com seu trabalho sem se preocupar com o prisioneiro que gritava muito.
A dor era insuportável e Houari já não conseguia mais suportá-la. Iria morrer ali junto com aquela árvore.
Quando seu corpo já não aguentava mais e seus olhos estavam pesados, Houari viu algo incrível. Um dos galhos da árvore agarrou os braços do homem e lançou-o para longe com força.
Assustado, o homem tentou recuperar sua serra, mas os galhos da árvore o impediram e prenderam suas pernas.
- Pare com isso agora! – disse o homem pálido de medo.
- Mas não... – O índio foi interrompido por um galho da árvore que agora libertava-o da armadilha.
Houari estava tão surpreso quanto o outro rapaz. Ele conseguia sentir os galhos das árvores, como se fossem uma extensão dos seus braços.
- Me solte ou eu...
- Ou você o quê? – Disse o índio se levantando do chão e encarando o bigodudo.
- Eu vou acabar com você e destruir a sua maldita tribo de esquisitos – Gritou o homem tentando desvencilhar-se dos galhos que não paravam de surgir em volta de seu corpo.
- Você nunca mais vai fazer nada contra nenhum ser vivo. – Foi a última coisa que Houari disse antes do homem desaparecer em meio aos galhos da árvore.
Era incrível aquela força. Houari conseguia tocar cada pensamento dentro daquela floresta, sentir cada sopro de vida.
- Então esse é o verdadeiro poder Mahuá!
A luz do dia lembrou Houari que sua missão não estava completa. Ele precisava levar a Sete Sangrias para o cacique.
Correu como se sua vida dependesse disso, se sentindo cada vez mais vivo. A passos largos, alcançou os limites da floresta proibida muito rápido, antes mesmo do anoitecer.
Ele continuou correndo até chegar a entrada da tenda do Cacique, sem se preocupar com os olhares curiosos que o acompanhavam.
Ao entrar foi recebido pelo curandeiro da tribo. Um senhor de muita idade que conhecia todas as ervas da região e suas propriedades de cura.
- Ele não vai resistir meu jovem - Disse o curandeiro.
- Ele vai sim. Olhe Cacique, eu consegui! Trouxe a Sete Sangrias pra você. Curandeiro prepare o remédio pra ele.
O cacique tentou se levantar um pouco para encara o rapaz, mas sua tosse o fez ficar na posição em que se encontrava.
-Não faça muito esforço – recomendou o curandeiro.
- Rapaz, você conseguiu encontrar a Sete Sangrias. Parabéns! Eu sabia que você possuía fibra!
- É eu consegui. Ainda temos tempo para salvá-lo. Ela é sua cura. – Disse o jovem insistente.
O cacique olhou nos olhos do rapaz e disse.
- Eu já cumpri minha missão nesse plano Houari. Meu tempo aqui acabou. A Sete Sangrias não era minha cura, ela ao menos possui propriedades medicinais. Essa é uma erva usada a milhares de anos por nossos ancestrais. Eles acreditavam que ela era capaz de libertar o poder Mahuá supremo. O índio que a possui-se poderia usar toda a sua força. Essa erva é na verdade a sua cura.
- Mas... Você não pode morrer. Eu tenho muitas dúvidas.
- Procure suas respostas nos céus e encontrará a sua resposta.
O cacique fechou os olhos lentamente e virou o rosto para o lado com um sorriso de satisfação. Naquele momento Houari sabia que não havia mais o que fazer. Ele estava morto. O líder da tribo Mahuá morreu.
Naquele dia muitas homenagens foram feitas e o corpo do cacique, assim como diz a tradição Mahuá, foi colocado em uma torre alta de pedra, pois os índios acreditavam que assim ele estaria mais próximo dos deuses.
O último desejo do cacique foi atendido e Houari se tornou o mais jovem cacique da história da tribo Mahuá com direito a uma grande festa em sua homenagem.
Enquanto todos dançavam e riam Houari se afastou da tribo e subiu até o túmulo do cacique para se despedir.
- Adeus. Que você encontre a paz. – Houari se ajoelhou e colocou a mão sobre o túmulo de pedra. Ficou ali por um tempo, em silêncio, apenas ouvindo o seu coração bater forte.
Um vento forte começou a soprar de repente, o que fez com que o jovem levantasse com um pulo ligeiro. Por trás das montanhas surgiu um helicóptero que voava baixo sobre a região. Houari já tinha visto aquele helicóptero. Era o mesmo helicóptero em que estava 20 anos atrás quando era ainda uma criança. Um helicóptero branco com um número sete estampando sua lataria. Jamais esquecera desse símbolo.
O índio ficou ali, apenas admirando o helicóptero que ia embora, como se não tivesse encontrado o que viera buscar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário