Aquele grito certamente ressoou por toda a Terra. Além da barreira do som, além dos limites físicos. Um grito da alma, um grito adormecido. Naquele instante morreu um garoto, e nasceu um futuro herói.
HISTÓRIA 5 – VITAL, A VOZ QUE ROMPE O SILÊNCIO
Os monges tibetanos são conhecidos por ser um povo muito pacífico e recluso, vivendo além dos grandes picos. Passam o dia a meditar e a fazer rituais, longe de qualquer influência do mundo externo. Mas um pequeno garoto estava a caminho...e a corrente do destino traria ventos de mudança definitivos para o clã Qī. E para o mundo.
Em uma aparente manhã comum, dois monges tibetanos encontravam-se nas proximidades de um rio a fim de buscar água. Um deles avistou algo incomum vindo a muitos metros à frente, mas em velocidade pela correnteza do rio.
- O que é isto, mestre? – Perguntou Len Quo ao seu superior, referindo-se ao estranho objeto que se aproximava pela margem do rio.
- Me parece um cesto, Len Quo. Vá até a margem e o apanhe.
- Mas mestre, não vê que a correnteza do rio está muito violenta hoje? É arriscado!
- Não se preocupe. Se for a corrente do destino, você conseguirá apanhá-lo.
O monge apoiou-se junto à margem do rio Nam, mas a correnteza estava realmente violenta. O objeto veio com uma enorme velocidade, bicando pelo canto, quando Len Quo estendeu a mão para puxar o objeto pela enorme alça, mas o cesto foi mais rápido que o monge.
- Eu não consegui mestre!
- Olhe para o lado, Len Quo. O que eu te disse sobre a corrente do destino?
Milagrosamente, o cesto ficou enguiçado em um galho de árvore alguns metros à frente. Os monges retiraram o objeto do rio e viu tratar-se de fato de um enorme cesto artesanal. E dentro do cesto, sobre a proteção de uma toalha, estava um bebê. Não parecia recém-nascido, mas também não deveria ter mais do que alguns meses.
- U-uma criança, mestre!
- Por Budah! Quem abandonou uma criança no leito do rio??
- Muito cruel. Pobrezinho, não chora. Parece estar mort... – Antes que o tibetano concluísse seu raciocínio, aquela criança aparentemente sem vida disparou uma rajada de urina em sua face.
- Haha, ela vive! É um sinal de Budah. – Celebrou o mestre, elevando as mãos aos céus.
- É mesmo uma dádiva! – Sorriu o monge ainda com o rosto molhado por urina. – Mas o que faremos com ele, mestre?
- É óbvio. Esta criança nos foi enviada por Budah. Ele seguirá conosco ao monastério.
- Compreendo.
Os monges retomavam a trilha de matas altas e rochas delineadas, que se dava em uma espécie de estrada fechada, que tornava-se mais íngreme conforme avançavam. Enquanto o Mestre carregava a criança no colo, Lin Quo carregava os baldes d’água e refletia sobre uma questão relevante.
- Como vamos chama-lo, mestre?
- Ele resistiu a violência do rio Nam. O garoto é a essência da vida. Vamos chama-lo de Li.
- Energia vital? Interessante.
Os monges seguiram adiante pelo caminho recheado de rochas e delineamentos, que depois se davam em espirais não lineares de forma a subir os picos lentamente. Aquelas trilhas foram formadas pela própria natureza durante milhares de anos e muitos homens desconheciam suas origens e seus destinos.
Ao fim de muita caminhada chegava-se na costa dos picos Min Min, onde se encontrava o Monastério do clã Qī. O enorme templo abrigava cerca de 2.000 monges dentro de suas diversas alas e brigadas. E todos os numerosos monges ficaram imensamente surpresos e curiosos ao avistarem o Mestre e seu braço-direito adentrando o templo com um bebê.
- Alegrem-se, monges do clã Qī. Esté é o enviado de Budah! – Proclamou o Mestre aos seus milhares de pupilos. – Vamos recebê-lo com alegria!
Aquele dia os monges celebraram com música e dança, além de beberes e comeres, algo que era fora de costume. Aquele era um dia especial. Ao fim da celebração, todos fizeram uma enorme corrente de meditação e oração a Budah, agradecendo pela vinda de um sinal divino.
Sob os cuidados do Mestre e de Lin Quo, o garoto passou a ser criado com um cuidado extremamente especial. Os monges budistas acreditam fortemente na manifestação de sinais e prodígios divinos por intermédio de Budah, e segundo a sua crença, um sinal de Budah jamais deve ser ignorado. Por isso o garoto recebia vigília constante. Lin Quo se tornou o protetor do garoto, sob a tutela direta do Mestre.
O tempo passava, e o garoto crescia saudável e forte. Aos quatro anos de idade já meditava e realizava alguns dos rituais cerimoniais dos monges, e a tocar tambores e instrumentos de corda. Aos cinco anos iniciou seu treinamento nas artes marciais, no princípio através de Lin Quo, e depois pelo próprio Mestre. Cada vez mais o Mestre se aproximava do menino, pois enxergava nele um potencial extraordinário, e passava a monitorar sua doutrinação mais de perto. Conforme o garoto crescia, mais o Mestre passava a se tornar seu mentor, e aonde quer que fosse o garoto estava do seu lado. Lin Quo, aos poucos, acabava sendo deixado de lado, tanto pelo garoto como pelo Mestre.
O mais curioso é que o garoto não falava. Por mais que Lin Quo e o Mestre tentassem de alguma forma estimulá-lo ou provocar alguma reação, ele não falava. Mesmo quando sentia dor, se machucava ou algo do tipo, jamais gritou ou esboçou alguma espécie gemido. Desta forma os monges concluíram que o menino fosse mudo. Talvez fosse por este motivo que ele não chorava quando foi encontrado na margem do rio. Por este motivo o garoto também era conhecido pela alcunha de yǎ ba (mudo, em mandarim), mas o Mestre não gostava nenhum pouco de ouvir o chamarem assim.
Vital, ou Li, como foi batizado pelos monges, já chegava aos doze anos de idade. Esta é uma idade crucial para um jovem monge. É a época em que este deve encontrar o seu apogeu espiritual através da imersão em meditação. Nesta altura, o menino era exímio no kung-fu e nas doutrinas de tai-chi-chwan, e até mesmo conduzia alguns ritos no monastério, sempre sob a tutela do Grande Mestre. Aliás, o Mestre e o menino eram agora como unha e carne. Vital sempre o acompanhava e estava ao seu lado o tempo todo, lhe auxiliando em tudo o que fosse preciso. Lin Quo, por sua vez, continuava a seguir a lado do Mestre, mas quase não recebia atenção alguma. Alguns comentários maldosos corriam pelo monastério, dizendo que Quo não era mais útil e que não passava de um puxa-saco do Mestre. Tais burburinhos irritavam profundamente Quo, que era, por escala de hierarquia no monastério, o segundo grande mestre e o mais provável sucessor ao comando após o fim do legado do Mestre.
Por fim, era chegado o momento em que o garoto deveria retirar-se para a profunda meditação, o que ocorria em um templo localizado do lado externo do monastério, além do pátio principal. Aquele templo era chamado de Brigada da Luz, pois ali o monge receberia sua iluminação espiritual definitiva. Tal hibernação espiritual, como também era conhecido este ritual, não possuía um tempo certo de duração. O monge deve permanecer ali quanto tempo for necessário para que ele atinja o Halleluia, o estado espiritual perfeito. Isso pode levar dias, meses ou mesmo anos. Todos os monges do templo já passaram por este processo. Alguns homens mesmo morreram dentro do templo, pois por toda a vida nunca encontraram a Iluminação.
- Você já sabe o que fazer, não é? – Inferiu o Grande Mestre ao menino, que acenou com a cabeça. O garoto caminhou até o centro do pequeno templo, sentou-se e cruzou as pernas em posição de lótus, a ideal para a meditação. Ergueu as mãos à altura do ombro e fechou os olhos. Neste instante, o Grande Mestre selou o portão do pequeno templo e deixara o garoto ali, por quanto tempo fosse necessário. Acreditava que não o veria por um bom tempo, pois o espírito do garoto deveria trilhar um caminho muito longo em busca de sua origem, e o Mestre sabia que este caminho seria diferenciado. Lin Quo o esperava do lado de fora, e ambos deixaram o local para voltar ao monastério.
Longe do garoto, o Mestre, por mais que pudesse disfarçar, transmitia um semblante triste e passava a se distanciar dos demais monges, mesmo de Lin Quo. O Mestre sabia que talvez não voltasse a ver o garoto novamente, caso este passasse anos dentro do templo. O líder do clã Qī já possuía uma idade avançada. Isto preocupava a todos. Lin Quo tentava se reaproximar do mestre, mas era em vão. Ele estava muito recluso, quase não deixava a sala de meditação e falava muito pouco. E assim continuou sendo durante muitos anos.
Era um dia cinzento e frio nos picos Min Min. A neve caía, de forma a ocultar ainda mais o Monastério por trás das grandes formações rochosas. Já haviam se passado quinze anos desde que o menino havia entrado em estado de hibernação espiritual. O Grande Mestre já estava bastante debilitado em função da idade, praticamente não deixava sua sala, e passava dias a meditar em silêncio. Silêncio este que era interrompido somente por suas tosses, que se tornavam cada vez mais constantes e violentas. Não restava muito tempo de vida para o velho líder do clã, e este pensamento já estava presente na mente de todos os monges do clã. Inclusive Lin Quo, que cuidava do líder doente sempre que necessário. Naquela tarde, Lin Quo decidira ter uma importante conversa com o Mestre.
- Mestre, sei que está muito doente e não deve querer falar...mas tem algo sobe o qual precisamos conversar.
- ...Sei do que se trata (cof!), imaginei que este dia estivesse próximo. Hurgh...sente-se, Lin Quo. – Mesmo estando quase cego, o mestre podia notar a postura de seu subordinado, e pedia que este se sentisse mais confortável.
- Não é necessário. Mestre...sabes, melhor do que todos nós, que não tens muito tempo de vida. E que o clã precisará de um novo líder.
- Claro. – Assentiu o Grande Mestre.
- Mestre, como Segundo Líder Espiritual e Marcial dentro do clã, seu braço-direito e descendente direto do último Dalai-Lama, e por todos esses anos em sua companhia e próximo de todos os ensinamentos doutrinais ministrados diretamente por você, acredito estar preparado para assumir este posto.
- Entendo seu posicionamento, Lin Quo. Mas (cof!)...lamento dizer que não posso te conceder este posto.
- O QUÊ???? – A reação de surpresa e indignação foi imediata ao monge. Ele, assim como praticamente todo o clã, tinha como certo a sua sucessão á liderança.
- Lin Quo, você se lembra muito bem daquele dia em que encontramos o garoto no rio Nam. Ele é uma dádiva de Budah, o escolhido dos deuses. Não há outro motivo para ele ter vindo parar aqui, senão para liderar este clã para um novo rumo. Hurgh... – O mestre se contorcia levemente com a dor e a vinda de uma nova tosse, esta acompanhada de sangue.
- Isso não é justo, Mestre!!! Eu o acompanhei por todos estes anos, dediquei dias, horas, meses, sangue e suor ao seu lado, trabalhei com afinco por tudo e todos e fui extremamente disciplinado em todas as doutrinas do budismo. Por que este garoto, que sequer sabemos de onde veio, deve assumir o clã?
- Não seja tolo, Lin Quo. Você sabe muito bem que não podemos ignorar um sinal divino. A origem do garoto não importa... sabemos que ele é o escolhido. ... Por que acha que ele ainda está meditando? É provável que ele tenha encontrado o próprio Budah em sua trilha espiritual.
- Isto é bobagem! Me perdoe Mestre, mas acho que a idade já afetou a sua mente. Isso não faz o menor sentido. Não posso ser conivente com esta decisão.
- Lin Quo... eu esperava mais sabedoria e maturidade de você.
- E eu esperava um mínimo de gratidão! Estou francamente decepcionado, Mestre. Você não passa de um velho ingrato e doente!
- Ora, seu... argh!!! – O velho sentia as ofensas de seu pupilo e se retorceu em um momento de dor emocional e física. Uma tosse muito forte o abateu, enchendo o assoalho de sangue e debilitando-o, de forma a não conseguir falar mais naquele instante.
- Ainda vai pagar caro por esta escolha, Velho Mestre. – Profetizou Lin Quo antes de deixar o recinto, extremamente furioso. O Mestre apenas guardou-se na mesma posição que se mantinha, com falta de ar e muita dor. Dor esta somente não maior que a do coração. Ele havia perdido seu principal assecla e não conseguia entender de onde havia vindo tanto ódio e incompreensão.
Alguns dias depois todos do monastério souberam do acontecido, embora evitassem falar sobre o assunto. Lin Quo já não permanecia mais ao lado do mestre, e muito pouco era visto dentro do templo. Outros asseclas passaram a cuidar do velho mestre, de forma periódica. Desde a discussão o Mestre estava ainda mais doente, quase imóvel e mudo. Às vezes, quando conseguia falar, perguntava sobre Lin Quo, mas os monges não sabiam responder. Perguntava também sobre o menino Li, mas este ainda permanecia em meditação. O Velho mestre desejava muito vê-lo outra vez antes que deixasse este mundo.
Enquanto isso, Lin Quo passava mais tempo fora do monastério do que nele. Ninguém sabia dizer ao certo o que andava fazendo. Certo dia, Gu Mao, um monge considerado extremamente fofoqueiro e curioso, decidiu seguir Lin Quo, quando este descia a trilha dos picos Min Min rumo ao rio Nam. No entanto, o ex-braço-direito do Grande Mestre estava tomando um rumo diferente da trilha. Oculto atrás de alguns rochedos, Mao observava de longe quando viu Lin Quo adentrar uma espécie de planície arenosa localizada nas encostas do pico. Naquela planície encontravam-se alguns homens vestidos de terno e um helicóptero pousado. Mao jamais havia visto alguém além dos picos, portanto desconhecia aquelas vestes e ainda mais aquele estranho objeto com hélice. Esgueirou-se por entre a encosta, e tentava ouvir o que aqueles homens conversavam.
- Eu garanto! – Afirmava Lin Quo aos engravatados – São tesouros genuínos do império Mei. Ouro puro, adornos de prata e rubi, pedras de jade e diamante escarlate... coisas milenares.
- Bom...precisamos de uma garantia. – inferiu um dos sujeitos. Possuía aspecto asiático, muito provavelmente deveriam vir das cidades centrais ou de Hong Kong.
- Veja, este é um de nossos artefatos. – Lin Quo tirou de um embrulho a adaga Fang, toda lapidada em ouro e rubi. A adaga foi usada pelo imperador Mei Fun em guerra, nos anos 10.000 A.C, quando este cortou a garganta de sua esposa. Ao ver o objeto, Gu Mao quase teve um infarto.
- Não pode ser! Ele roubou a adaga! – sussurrou em espanto para si mesmo. O Templo de Qī guardava muitos tesouros do antigo império chinês. Estes tesouros encontravam-se selados em uma sala posterior a sala do Grande Mestre. De alguma forma, Lin Quo conseguira ter acesso a eles.
- Está feito. Nosso chefe vai adorar. O que você nos pediu foi coisa grande, como bem sabe, mas já estamos acostumados com esse tipo de serviço. Quando devemos atacar? – Indagou o sujeito, que parecia liderar os demais.
- Atacar??? O que ele está tramando? – O pensamento batia à mente de Mao. Algo muito ruim estava por vir.
- Amanhã ao anoitecer. – Sugeriu Lin Quo. – É o momento em que todos estarão em seus retiros espirituais. Vocês devem pousar os helicópteros na planície externa ao pátio, assim ninguém os virá ou ouvirá chegando. Estarei lá esperando.
- Certo. Seu passaporte para Hong Kong já está assegurado. Mais alguma ressalva?
- Não. Só não esqueça de matar todos. Todos! Quanto ao velho, deixe comigo. – Ressaltou o monge, vingativo.
Gu Mao entrou em desespero. Sem saber o que pensar, saiu correndo em disparada rumo ao templo, até que fora atingido por uma pedra na cabeça. Atordoado, caiu sobre o solo e viu a silhueta de Lin Quo surgir à sua frente.
- Você viu tudo, não foi? – Intimidava o monge, dando em seguida um pisão na barriga do assecla gorducho e curioso.
- Argh! O que vai fazer???
- Sabe que não posso deixar que volte ao templo com vida. – Forçava mais o pé sobre o sujeito, de forma a faze-lo gritar. Lin Quo era o lutador mais hábil do templo, e era de fato muito forte.
- Não, tenha piedade!
Sem pestanejar, Lin Quo ergueu Mao pelo manto e com a outra mão atravessou os dedos em seu pescoço. Mao estava morto, e o maligno plano de Lin Quo seguiria em frente.
Na noite seguinte, como previsto, todos os monges estavam em meditação. Isolados, não mantinham o menor diálogo uns com os outros. O silêncio era absoluto. No grande salão encontravam-se todos os milhares de asseclas, em posição de lótus, liderados agora por Hun Cha, após o sumiço de Lin Quo. Ele sentava-se a frente de todos, próximo a porta principal. Enquanto isso, o Grande Mestre estava recluso em sua sala.
Hun Cha ouviu um som estranho, e abriu os olhos. Sem certeza do que se tratava, preferiu não interromper a sessão. Ouviu outro som novamente, e então algumas das centenas de velas que percorriam o templo se apagaram de forma súbita. Era um sinal claro de mau presságio. Assustado, Cha levantou-se e tentou, sem fazer barulho, ir em direção a porta. Mas ela foi aberta antes que pudesse tocar a maçaneta. Com um estrondo enorme, a porta era escancarada por uma dezena de homens de terno, armados até os dentes. Cha só teve tempo de gritar.
- CORRAM!!!!
Tarde demais. Os homens abriram fogo no mesmo instante, e um verdadeiro massacre teve início. Os monges tentavam correr, mas era em vão. Lin Quo cuidou para que todas as demais saídas do pátio principal estivessem trancadas. Ninguém conseguiria escapar. Balas e mais balas, gritos e mais gritos. Antes que as rajadas de tiros tivessem cessado, não havia mais nenhum monge de pé. Um verdadeiro mar de sangue podia ser visto naquele cenário.
Enquanto isso, Lin Quo invadia a sala do grande mestre. Ele, embora debilitado, percebera a presença de um pupilo seu. Lin Quo se aproximou do mestre e puxou-lhe pelo manto, com alguma força.
- ...Lin Quo? É você? O que está fazendo?
- Dê adeus ao seu legado, velho mestre!
Lin Quo, com uma tocha na mão, ateou fogo na grande sala. Repleta de tapetes, cortinas e afins, não demorou para que o fogo se alastrasse em segundos. Sem qualquer reação, o Grande Mestre morreria queimado em instantes.
A fumaça se espalhava rapidamente e já cobria quase todo o monastério. Enquanto Lin e os assassinos se preparavam para deixar o local, a fumaça adentrava de forma violenta a Brigada da Luz. O cheiro forte e a ardência das cinzas fez com que o garoto Li, agora um homem de 27 anos, despertasse subitamente de sua longa hibernação. O choque com o mundo físico foi muito forte, e o rapaz se viu bastante atordoado. Logo constatou que havia algo de errado, além da nuvem de fumaça, enquanto ouvia os últimos gritos dos monges assassinados. Com um golpe muito forte, quebrou o portão que estava selado e partiu em direção ao salão. Então deparou-se com a cena que traria a tona uma força imersa dentro de seu ser durante anos. Vital viu todos os seus colegas mortos, ensanguentados naquele enorme salão que começava a ser consumido pelas chamas. Os homens de preto, que retornavam pelo salão com alguns tesouros nas mãos, notaram a presença do rapaz, mas não tiveram tempo de reagir ao que se daria. Como jamais esperado de alguém que era considerado mudo, Vital deu um grito como jamais fora ouvido na Terra. Um grito capaz de provocar a erupção de um vulcão. Um grito adormecido a muito.
- NÃÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!!!!!!!
No mesmo instante, uma enorme onda provocada pelo rompimento da barreira de som arremessou aqueles homens como se fossem feitos de papel. O chão, as paredes e vigas do templo, bem como tudo aquilo que ali se encontrava, começavam a ruir.
Sem entender de fato o que aconteceu, Vital só pensou em tentar encontrar seu Mestre. Mas já era tarde, ao chegar no local, deparou-se, com corpo do mestre sendo consumido pelas chamas. Com lágrimas imediatas nos olhos e atônito a tudo que estava acontecendo, Vital olhou para o lado e viu Lin Quo, que naquele instante tentava fugir do local, já na porta do helicóptero. O monge traiçoeiro ficou incrédulo ao ver que o rapaz havia acordado de sua hibernação e acabara de fazer o que havia feito.
- Não é possível....!!!! Você deveria estar morto!! Não...que droga! Eu me esqueci de você!!!!
- Foi você quem fez tudo isso, não foi??? – Já estava óbvio, mesmo para Vital, que jamais soube da discussão entre ele e o Mestre, que Lin Quo fora o autor do massacre.
- Você nunca foi mudo...será que Budah o despertou para esse dia??? Que droga! Você deve ser mesmo o escolhido!
- Maldito! – Vital correu em direção ao helicóptero, mas este iniciou o vôo antes que pudesse alcançá-lo.
- Obrigado por estragar minha vida, mudinho! Vai morrer queimado como todo o resto!
Vital novamente se encheu de fúria, e desta vez lançou um grito ainda mais poderoso e estrondoso que o anterior.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!
As ondas sônicas fizeram com que os picos Min Min tremessem por completo. O alcance das ondas, em direção ao helicóptero, atingiu o objeto voador em cheio e este explodiu na hora. Lin Quo estava morto, assim como todo o clã Qī. Não restavam mais nada além de cinzas e sangue. Vital, ou Li, estava agora sozinho. Os gritos fizeram o templo, que já estavam em chamas, vir abaixo por completo.
O que restava ao Escolhido agora, sem rumo algum. A única coisa que poderia fazer era meditar. Talvez Budah lhe mostrasse em mantra o porquê de tudo aquilo ter acontecido, e como ele conseguira fazer o que havia feito.
Vital desceu à margem do rio Nam, onde fora encontrado quando bebê, e passou a meditar ali por horas. Depois dias. Até que, em determinado momento, uma luz muito forte invadiu sua mente e seus olhos. Após um transe rápido e violento, Vital teve uma sucessão de visões. A primeira imagem foi de um sujeito alto, careca, de óculos e bem trajado; uma segunda visão mostrava o número 7 estampado na faixada de um prédio; a terceira visão apontou a bandeira do Brasil e o mapa da cidade de São Paulo; e uma última visão mostrava o Porto de Hong Kong.
O tempo em êxtase espiritual fez com que Vital estivesse muito próximo á divindade, e agora seus poderes ficavam claros. O escolhido possuía, além do grito supersônico capaz de ecoar por toda a terra, a capacidade de receber e conceber ideias e iluminações. As visões que recebera indicavam um trajeto, no sentido reverso. De alguma forma ele deveria chegar até aquele homem que lhe apareceu em visão. Talvez ele tivesse as respostas que procurava.
Para isso era necessário chegar ao porto de Hong Kong. Vital sempre ouviu do grande Mestre que, além do rio Nam, encontrava-se o porto de Hong Kong. Seguindo a trilha do rio, após dias de caminhada, Vital deparou-se com o enorme porto e, logo de cara, um navio que tinha como destino o Brasil. Reconheceu aquela bandeira que lhe apareceu em visão. O navio tinha como destino o porto de Santos.
Vital entrou escondido no navio e, após algumas semanas, desembarcou em Santos. Sem saber como se comunicar, desenhou aquele prédio com o número 7 estampado que lhe aparecera em visão e mostrava às pessoas, esperando que alguma delas lhe ajudasse a chegar lá. Peregrinou muito até que, em um posto de gasolina próximo à rodovia, um homem de cabelos grisalhos se espantou ao ver aquela imagem.
- Você conhece este lugar???
Vital não entendera nenhuma palavra, mas assentiu com a cabeça por imaginar o que ele havia perguntado. Na verdade sequer sabia exatamente onde ficava ou o que era aquilo, mas deveria dizer que conhecia se quisesse que alguém o ajudasse a chegar lá.
- Sei onde fica, mas prefiro não me meter com essa gente. Entre no carro, estou indo pra São Paulo agora.
O homem teve de fazer um sinal para que Vital entendesse que deveria entrar no carro. A viagem não foi muito longa. Aquele homem falava bastante no início, mas depois percebeu que era inútil pois o viajante não entenderia nada do que dissesse. Durante a viagem Vital observava as paisagens poluídas e cinzentas da cidade. Mas também não conseguida disfarçar a curiosidade ao notar as manchas que aquele homem carregava em algumas partes do corpo. O sujeito pareceu constrangido com o olhar curioso do monge, e então o tibetano parou de observá-lo. Poucos instantes depois, já estavam em São Paulo. Após adentrar algumas ruas bruscas, o carro parou exatamente em frente ao prédio que Vital vira em visão. Parecia inacreditável, mas ele havia chegado.
- Agora é com você. Boa sorte. – Proferiu o motorista, que acelerou fundo após deixar o monge em frente ao prédio.
A profecia parecia se cumprir. As visões foram claras. Agora, quem e o que lhe aguardavam lá dentro?
E por fim, quem era aquele misterioso homem careca de óculos?
As respostas não tardariam a vir.